Grada Kilomba e a representação portuguesa na Bienal de Veneza
Grada Kilomba e a representação portuguesa na Bienal de Veneza
Desconhecemos ao certo qual a direção do rumo da História, que galopa a uma velocidade onde cabem todas as minudências imponderáveis, acasos, paixões e arritmias inesperadas, nadas ilógicos capazes de definir aquilo a que chamamos de futuro. Mas há momentos oportunos e decisivos em que é possível conscientemente fazer a diferença desse rumo (rebelde) e desenhar futuros, urgentes e úteis para o mundo, que abrem caminho para a reflexão, a valorização e representatividade de um passado em ferida. Os resultados deste concurso poderiam plasmar essa oportunidade com a escolha da voz de Grada Kilomba como representante de Portugal na 59ª Bienal de Veneza, com o projeto A Ferida, artista cujo discurso e lugar de fala por ela conquistado é fundamental na cena artística internacional atual.
Grada Kilomba é hoje uma das artistas portuguesas com maior projeção internacional, autora antirracista e feminista de um discurso artístico sobre humanidade e representatividade, temas que desenvolve a partir da memória do passado colonial português, que tem sido pouco representado no tecido artístico nacional, sobretudo por artistas com tamanha propriedade, visão e alcance, como é o caso da própria Grada Kilomba. Quem viu a instalação e assistiu a uma das performances de “O Barco / The Boat”, que comissionámos e produzimos para a 3ª edição da bienal BoCA, em Lisboa, não poderá esquecer o silêncio arrepiante gerado nos corpos dos espectadores, o sentimento de respeito, reconhecimento e dor a partir daquele lugar de fala e da pertinência representativa daquelas vozes, palavras e corpos dos performers afrodescendentes ali presentes. As três performances apresentadas na Praça do Carvão do maat constituíram um marco no tecido artístico português, a vários níveis. Todas as pessoas que ali estiveram participaram disso e todas as pessoas que ali não estiveram sabem ou deveriam saber disso.
A BoCA lamenta que, após um silêncio histórico comprometido, questões que neste momento estão começar a ser finalmente debatidas de forma vibrante e séria no espaço público, que iniciam agora a expressão do seu lugar de fala no panorama artístico nacional, desde as práticas artísticas à teoria académica, temas que a BoCA tem inscrito na sua programação – cumprindo o que lhe cabe da sua responsabilidade ética de dar expressão às causas fundamentais que se discutem na esfera social, política, económica e artística, reiteradamente invisibilizadas e silenciadas pela História – e que traduzem uma liberdade conquistada, não sejam tomados como indiscutivelmente prioritários naquilo que representa não só um país mas um passado e uma identidade (ou ferida) colectiva mundial.
A programação da BoCA é um sismógrafo da vibração das questões que vivem a arte e a sociedade atual. Programar é saber estar atento às vozes que reverberam no mundo atual, desde os espaços mais subterrâneos onde se produzem movimentos dissidentes e de contracultura aos espaços cujos temas ascenderam à categoria de invisibilidade luminosa, muitos deles por via de uma luta histórica colectiva dessas mesmas vozes dissidentes. O papel da curadoria é também o de operar sobre as assimetrias, rectificar injustiças sistémicas, implementar políticas de cuidado que tornam prioritário, com toda a relevância e mérito das agendas possíveis, determinados assuntos que têm de ser discutidos publicamente. A representação de um país deve incidir sob estes passos, transformações e alcances de novas consciências e narrativas colectivas, que têm sido a minha missão na BoCA. Tornar a esperança possível é apoiar artistas que reivindicam o humano e abrem espaço para uma humanidade por vir, como é o caso da artista Grada Kilomba, de que reafirmamos a sua indiscutível importância na cena artística portuguesa e internacional, e com quem desejamos continuar a dialogar.
John Romão
Diretor artístico da BoCA Bienal de Artes Contemporâneas