Da traição da humanidade – O “Encontro” de Antony Hamilton e Alisdair Macindoe é uma coreografia hipnótica
Da traição da humanidade
O “Encontro” de Antony Hamilton e Alisdair Macindoe é uma coreografia hipnótica com um elenco de 64 instrumentos robóticos, habitada por questões que põem tudo em causa (para ver no Teatro da Politécnica, Lisboa, de 6 a 8 de abril)
Uma antevisão por Cláudia Galhós
Biologia e tecnologia. Humanidade e robótica. Articulação precisa do corpo e mente em movimento. Vertigem e meditação. Homem e máquina. As dualidades aqui sugeridas apenas tornam mais evidente a confluência de interrogações e convenções – teatrais, coreográficas, artísticas e também sociais e políticas – que Antony Hamilton & Alisdair Macindoe suscitam e põem em causa na peça “Meeting”.
O título é, desde logo, um sinal muito claro (e enganador) de evocação do tão referenciado momento de encontro ao vivo que as artes performativas proporcionam, quase num exercício contra-corrente e de resistência face às formas de comunicação mais vulgarizadas nos dias actuais. Mas neste caso, não é apenas sobre a colaboração entre dois artistas australianos com identidades distintas participando na criação de uma obra ou sequer na relação entre público e artistas. Há um terceiro elemento que interefere, ou carrega, outras qualidades de significado, para esta equação: os 64 engenhos robóticos (concebidos por Macindoe) que, curiosamente (rementendo para contextos mais ritualísticos e primitivos), são organizados em círculo, no cento do qual se encontram os dois bailarinos e coreógrafos durante a maior parte da duração da peça.
Estes objectos são instrumentos de percussão robóticos, que têm na extremidade lápis, que num compasso preciso ao milímetro vão batendo no chão, criando uma sonoridade de contagem temporal. Portanto, não estamos perante os corpos pós-humanos, mas há uma relação e contaminação, que desenha o gesto e o seu ritmo, que faz com que aquelas presenças não sejam exactamente simplesmente humanas. Não estamos perante o corpo com próteses, cuja articulação com acrescentos e novas extremidades, desencadeia novas tipologias de acção e, no entanto, há mútua-influência que desencadeia uma resposta física que não é natural ao humano e, com o decorrer da performance, vai revelar algo de humano aos instrumentos robóticos… Não estamos na dança clássica (nem na sociedade de ovelhas que se move em rebanho…) simplesmente a executar acções, sem pensar criticamente os gestos executados – e, no entanto, há uma pressão à execução do movimento que põe em causa a capacidade de raciocínio…
Há um território para além de todas as formulações destas questões que Hamilton e Macindoe desenham em cena, e que opera uma transformação, que ocorre durante o próprio espectáculo e faz parte da natureza coreográfica e simbólica do mesmo, mas também opera uma transformação que diz respeito a transportar para outra escala de ordem estes questionamentos. Até o virtuosismo é aqui reformulado. Sendo certo que chegam a Lisboa, pela bienal BoCA, no seguimento de uma digressão europeia que, para espanto dos próprios, tem tido uma atenção e destaque inesperados.
Tudo é muito complexo e tudo é, simultaneamente, muito simples. Os instrumentos robóticos, por exemplo, que abrem o campo de análise para o pós-humano, surge da concepção de uma peça sem música. Essa ‘não música’ que é já uma questão prenhe de significados e experimentações artísticas que têm mais de um século, foi nesta obra matéria de apurada pesquisa técnica. O som produzido facilmente é associado à imagem de alguém que bate com um lápis na mão a marcar o tempo num ensaio de dança, por exemplo. Foi isto mesmo que Antony Hamilton disse numa entrevista ao site Run Riot. Das suas respostas também constam algumas possibilidades para perceber a traição do humano e novas significações para virtuosismo: “As máquinas têm um ‘fitness mecânico com o qual nenhum humano pode competir. No entanto, aperfeiçoar a programação robótica foi onde as maiores complicações surgiram, e onde o Alisdair levou realmente as suas capacidades e competências a níveis impressionantes”.