John Romão
Diretor Artístico

 

Os novos templos

A primeira edição da bienal de artes contemporâneas BoCA é constituída por uma rede de parcerias com 40 instituições culturais nacionais e inter- nacionais, reforçando deste modo a importância nuclear destas entidades, que são lugares relacionais na essência, e por isso desempenham um papel primordial na vida das pessoas.

Museus, teatros, galerias, discotecas e espaço público – os espaços onde a BoCA tem lugar são os novos templos de uma sociedade que é hoje confrontada com reformulações (e ameaças) dos pilares da democracia, com a emergência de ideologias extremas que fazem propaganda da separação, do medo e da incerteza. As artes contemporâneas, hoje ainda mais funda- mentais do que ontem devido ao momento histórico que vivemos, encontram toda a sua legitimidade, encontram neste tempo e nestes locais de culto o refúgio que permite cumprir o seu potencial, em liberdade, fraternidade, pensamento crítico e elogio da diferença.

Estes lugares tornam-se assim sagrados pela extraordinária exceção que representam, respondendo à necessidade de inclusão, de diálogo e de mistificação, onde nos interrogamos juntos e refletimos sobre a sociedade de amanhã. Os novos templos da contemporaneidade, locais de abrigo e recolhimento processados através da experiência estética, são bombas de oxigénio que nos prometem segurança. Uma segurança tão segura que nos transmite a confiança necessária para caminharmos por sombras e escuridão, ou seja, o risco e a esperança.

Como uma ágora, a BoCA inscreve-se como um lugar de circulação do pensamento, de descoberta, de fantasia e de festa, que reclama o olhar do espectador com obras que ora ocultam ora expõem – ou sobre-expõem, como a carta roubada de Allan Poe – pontos de vista distintos sobre a sociedade e as suas questões políticas, sociais, económicas, filosóficas, de género, tecnológicas, entre outras. As artes contemporâneas têm esse poder quase divino de nos fazer recordar quem somos e onde estamos. O poder sagrado de nos recordar o quão somos tão profunda e fragilmente humanos.

As mais de 30 obras produzidas, coproduzidas e/ou programadas pela BoCA são bandeiras de questões e de gestos que traduzem a nossa época. Artistas que interpelam o nosso tempo, que se lançam ao íntimo desconhecido, que questionam as suas próprias estéticas e linguagens e colocam o presente no coração do seu trabalho e o coração no presente questiona- mento do seu trabalho.

Há uma dialética das imagens apresentadas nesta programação, desenhadas em cidades, países e culturas diferentes. A maior parte dos artistas que integra a programação está neste preciso momento a refletir, a questionar-se, a criar obras novas comissariadas pela BoCA e que terão a sua estreia mundial em Lisboa e no Porto. Apesar do espaço e do tempo que os separam, das diferentes culturas, das experiências física, sensorial e intelectual, desenham-se pontos de contacto entre eles, temas, estéticas, vibrações, referências, pautados por um sentimento geral de incerteza em que vivemos hoje. Nesta atmosfera de medo ambiente (M. Doel e D. Clarke), seja o que for que aconteça, chega sem se anunciar e vai-se embora sem avisar. Prefe- rimos não habitar um mundo que esconde mistérios, fingindo que não o faz. Preferimos habitar o que é o próprio mistério.

São vários os artistas nesta programação que, sob perspetivas e perante objetos artísticos diversos, se referem à criação de novos rituais, de novas religiosidades: a artista sueca Anastasia Ax constrói esculturas com fardos de papel reciclado e ativa a instalação através de uma performance visceral com tinta preta, falando de paralelismos com a mandala e o seu simbolismo associado às forças naturais de construção e de destruição; Rodrigo García apresenta no Museu Nacional de Arte Antiga “Pinball Bosch”, uma máquina de flippers transformada com imagens e sons a partir de “As tentações de Santo Antão” de Bosch; François Chaignaud e Marie-Pierre Brébant apresentam no Teatro Nacional São Carlos um recital/instalação duracional a partir da obra musical de Hildegarda de Bingen (séc. XII), que coloca as suas visões ao serviço do divino através de uma relação carnal e meditativa; a nepalesa-tibetana Aïsha Devi e o artista plástico chinês Tianzhuo Chen criam uma performance musical no Lux-Frágil que sobrepõe símbolos religiosos e iconográficos vindos de subculturas urbanas; a coreógrafa Mariana Tengner Barros dirige e dá o corpo à performance duracional “Instructions For the Gods – i4G”, para o Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado, em colaboração com o estilista Estelita Mendonça e o músico Jonny Kadaver como PandemiCK; ou o artista russo Kirill Savchenkov, de quem vamos projetar um conjunto de vídeos na fachada da Casa da Música, oferece em “Museum of Skateboarding” um guia prático de sobrevivência para skaters na cidade, que integra uma rotina de exercícios com mantras, trabalho respiratório e epigramas filosóficos. Esta nova religiosidade, que nos parece libe- rar da ditadura da realidade, adentrando numa fantasia crítica, está presente em projetos associados à tecnologia, como por exemplo, a instalação “Dead Drops” que estará disposta nas ruas de Lisboa e Porto, do artista alemão Aram Bartholl, pela primeira vez em Portugal; na performance-instalação “1k ways to die”, da artista sueca Florentina Holzinger em colaboração com a artista espanhola Claudia Maté, expoente da arte digital, ambas também pela primeira vez no nosso país; ou na peça de dança “Meeting” dos premiados bailarinos e coreógrafos australianos Antony Hamilton & Alisdair Macindoe, que aliam 64 instrumentos robóticos de percussão a uma dança despida. Estes são apenas alguns elementos que desvendam a malha que começa a tecer-se na BoCA e que, por várias interseções, cruzamentos e paradoxos, dá corpo a um movimento que, sendo na essência cultural, é social e político.

 

Uma rede de sinergias

A BoCA apresenta-se como um laboratório de democratização cultural: durante o período de 17 de março a 30 de abril, as nossas atividades centralizam-se em Lisboa e no Porto, para depois se expandirem pelas 5 regiões do país e pelo estrangeiro, que recebem ao longo do ano obras que estrearam na bienal. Este movimento de desdobramento e expansão permite levar mais longe o retorno de todo o investimento de artistas e participantes (espectadores, entre outros): o público encontra-se e contacta com obras e artistas novos e os artistas participam da circulação e difusão do seu trabalho, no âmbito nacional e internacional.

Paralelamente, um dos pilares da BoCA é o seu programa educativo, que abrange 4 cidades do país (Lisboa, Porto, Castelo Branco e Braga), constituído por diferentes ações: laboratórios de pensamento e criação, work shops, conferências, debates e encontros com artistas. Através de programas de sensibilização artística, em contacto com alunos e professores, universidades e escolas profissionais, a BoCA atua também junto de um público não-especializado constituído por adolescentes, jovens e seniores que acompanham de perto a construção da bienal e testemunham a construção de obras até à sua estreia. A equipa da BoCA Sub21, constituída por jovens até aos 21 anos, é exemplo disso e acompanha ao longo de três meses a construção da bienal e das obras dos artistas portugueses, trabalho que resulta na documentação e publicação regular no blog da bienal. Destaco também a Videoteca BoCA, no foyer do Teatro Nacional D. Maria II, onde se podem descobrir obras que de outra forma não se teria oportunidade de ver, ou de rever.

Pensada de forma transversal e expansiva, a bienal BoCA desenha uma sinergia entre pessoas e instituições culturais nacionais e estrangeiras (museus, galerias, teatros, discotecas), incluindo ações pontuais no espaço público, entre territórios artísticos (artes visuais, artes cénicas, performance e música) e entre os seus respetivos públicos. Esta sinergia inédita viabiliza o acesso da população à pluralidade criativa e promove o diálogo de indivíduos, grupos com caracte- rísticas específicas e comunidades que normalmente não comunicam entre si.

A programação contempla projetos com ideias e imagens metamórficas, ou seja, que refletem uma dupla relação poética e política da arte. O conjunto de imagens produzidas pelos artistas que integram a programação sublinha o papel do artista enquanto semionauta (Nicolas Bourriaud). Recorrem a dife- rentes épocas e estilos e a partir dos signos que pertencem a espaços-tem- pos afastados entre si, criam imagens que refletem uma visão globalizada da cultura. Esta visão reflete o tempo que vivemos – uma geração líquida, marcada pela velocidade, pela tecnologia e pela expansão do conhecimento (virtual), que desenraíza o corpo da sua terra-natal, porque “somos perfeitos nómadas”, escreve Paul Virilio. Esta qualidade de globalização foi absorvida pelos artistas e são claras as influências nas suas linguagens, que flutuam por territórios cruzados, refletindo com frequência a atual justaposição dos universos material e digital.

Atendendo a esta qualidade, durante os 2 anos de preparação da primeira edição da bienal BoCA, pude encontrar-me com artistas e propor-lhes a criação de obras originais que saíssem fora da sua área de especialização ou dos espaços de apresentação que costumam habitar. Estas propostas apa- rentemente “desviantes” não são mais do que membros constituintes de um corpo-identidade que cada artista foi compondo e que lhes diz inteiramente respeito. Extraindo uma qualidade ou característica que habita esse corpo de trabalho, propus, por exemplo, aos artistas visuais João Maria Gusmão & Pedro Paiva que desenhassem uma exposição para o palco do Teatro Nacional D. Maria II, propus ao encenador e dramaturgo argentino Rodrigo García que criasse uma instalação para o Museu Nacional de Arte Antiga ou à realizadora de cinema Salomé Lamas que concebesse a sua primeira peça de teatro. Seduzidos por esta liberdade, outros artistas propuseram-me a criação de obras cujo media é distinto do seu habitual: a artista-ativista cubana Tania Bruguera confessou-me o seu desejo de encenar “Endgame” de Samuel Beckett, texto que tinha lido em 1995 e que ainda guardava cheio de apontamentos, que estreia no Porto e seguirá em digressão internacional, ou a dupla de artistas Ana Borralho & João Galante que estreiam um concerto-instalação para um espaço não-teatral, o Pavilhão Branco do Museu de Lisboa – Núcleo Palácio Pimenta.

A BoCA carateriza-se, assim, como um espaço de cruzamentos, de exceção, de reflexão e de experimentação artística, mas não se fecha na arte. A dinâmica de cruzamento operado entre instituições, campos artísticos e públicos, permite ao público nacional e internacional descobrir uma programação vasta e diversa proveniente dos territórios das artes visuais, das artes cénicas, da performance e da música, através do mapeamento de instituições culturais do país que abrem as suas portas, de mãos dadas, à primeira edição da bienal BoCA.

A bienal apresenta-se como um gesto comum, que coloca o mundo em mo- vimento: artistas, técnicos, produtores, espectadores, programadores, dire- tores artísticos, críticos, pensadores, políticos, cidadãos de todo o mundo – são eles, na sua diversidade, como um movimento, a BoCA. Eu, incentiva- dor deste gesto comum, posiciono-me como diretor artístico mas também como artista: questiono os processos criativos e de construção, os lugares de representação e de transmissão, o lugar do artista e do público. A escolha de quatro artistas residentes para o biénio 2017-2018 – o coreógrafo e performer francês François Chaignaud, os artistas visuais portugueses Musa paradisiaca, a realizadora de cinema portuguesa Salomé Lamas e a performer e artivista cubana Tania Bruguera – prende-se com a vontade de ter uma relação aprofundada com artistas de territórios artísticos e países diferentes, pensando em conjunto, conhecendo as suas motivações, ajudando a produzir e estreando em Portugal obras novas abertas ao mundo.

Ver e tornar visível – são dois gestos que se experimentam nesta progra- mação, refletindo sobre o poder perturbador da arte, que nos interroga o olhar e mostra o que nos rodeia. E é o que proponho ao público, que vejam através dos olhos dos artistas, que se permitam experienciar outros espaços – os novos templos – livremente, que conheçam outros públicos, que cruzem pontos de vista, que integrem este movimento que é a BoCA. Um movimento que se inscreve na cidade, que deixará rasto e cor – quais skaters que colorem velozmente as ruas de Lisboa e Porto, no vídeo de promoção da BoCA.

Vemo-nos por aí.